Penso que só a Senhorita Lispector poderia criar
um livro, em forma de monólogo, nascido
de anotações de bolso – em contas ou qualquer papel que encontrava durante seus
dias/noites – e com um nome tão singular: Água Viva.
A água viva é uma esfinge, ou seja, um animal
misterioso e estranho: um corpo gelatinoso, com tentáculos que dançam, uma
aparente fragilidade e sutileza que comove e fascina. Essa criatura que parece
doce, frágil, transparente pode ser amarga, voraz, nebulosa e queimar –
chegando a matar-. Um animal antagônico na essência. A água viva para se locomover depende da
maré, porém a danada é tão rebelde que consegue vencer sua condição de
dependência marítima e nadar lançando
jato de água - livrando-se das correntes impostas pela própria natureza-. Contudo se essa criatura se encalhar na praia...irá evaporar, pois
98% de seu corpo e formado por água. Interessante, né? Evapora. E o quanto de
nós evapora diuturnamente, né?
Ah! E a Senhorita Lispector compreendia belamente o animal. Só
posso ter esse entendimento, pois para titular uma obra com esse nome é por demais significativo... Afinal as
águas vivas adultas são medusas, sim... Para homenagear a criatura mitológica,
a qual tinha cobras no lugar dos cabelos e que transformava quem olhasse
diretamente para ela em
pedra. Lembrando que só
se pode olhar, sem riscos, para uma medusa pela imagem refletida no espelho.
Bem toda essa introdução para dizer que o titulo
por si só explica a existência do livro: o instante; a urgência da vida e a
necessidade de se enxergar, mesmo que por espelhos. E assim como a vida, o
romance não possui enredo, ou história linear, há ciclos e nunca uma reta. É um
texto para ser sentido e vivido intensamente. E como a ação de viver, as
medusas, este livro pode ser lido livremente, do fim para o inicio, do meio
para o inicio e assim nunca se esgotarão as possibilidades de leitura/vida. A
medusa é um autorretrato, um misto de horror e vaidade. Todo espelho traz dor,
fúria e raiva.
A narradora do livro é uma pintora que muitas
vezes, durante a leitura, tive a impressão de ser a própria Clarice aos
avessos. Um monólogo que interage com o nosso âmago; porque na pintura como na
literatura – ou em outras expressões de artes – busca-se quebrar o silêncio e
dizer o indizível, traduzindo respostas para todas as inquietações humanas.
A pintora busca o “ instante já”, o agora – porque é este momento que se é vivo, o resto são divagações – passado ou futuro- , mas isso não ultrapassa a criação artística. O livro demonstra que a vida é feita de acasos. E o acaso pode ser uma coisa – it – o pronome em inglês neutro que ela usa no texto. Alias ela inicia o livro com este enunciado: “ Eu sou puro it que pulsava ritidamente. Mas sinto que em breve estarei pronta para falar em ele ou ela. História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It é mole e é ostra e é placenta. Não estou brincando pois não sou um sinônimo – sou o próprio nome. Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo. Há o futuro. Que é hoje mesmo.”
Talvez poucas leituras na minha vida me ofereceram a oportunidade de nadar em mim...de perceber o pior e o melhor da Daniela. Um livro de beleza impar, o qual nada mais é que o reflexo de nossas inquietações. Assim como não podemos olhar diretamente nos olhos da medusa porque nos tornaremos pedras...não podemos olhar para nós porque não aguentaríamos a dor. Portanto, é necessário espelhos para refletir nossa imagem... para podermos tocar o real. Leitura para sentir e viver.
“ O imprevisto improvisado
e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de
existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não
podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real
entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixadamente por instantes.
Tais momentos são meus segredos. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu
chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece
que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou desumanidade – o IT!
O que faço por involuntário
instinto não pode ser descrito.
Que estou fazendo ao te
escrever? Estou tentando fotografar o perfume.”
Água Viva – Clarice Lispector
– Pág 89.
Um comentário:
Adoro Clarisse e todas as coisas que ela escreveu. Era profunda e instrospectiva. Lamento não ter lido mais que dois ou três livros. É que não suportaria tanto abismo sem uma pausa para tomar fôlego.
Nunca havia feito essa reflexão a respeito da água-viva. Uma bela metáfora para o IT.
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